28.3.11

Doutrinei a minha estante

Duas graduações, duas gestações. Nasceram autores e outros foram abortados de minha estante. Não havia espaço para todos. Os nascidos antes e durante a primeira gestação, manuseados, devorados e...encaixotados;  os da segunda, enfileirados, novos, pouco utilizados. Os primeiros, perpétuos; os segundos renováveis, a vida destes era curta, enquanto daqueles... imortalizados: Gabriel Garcia, Saramago, Lygia Telles, Dostoiévski...
Durante anos, os primeiros foram relegados ao esquecimento em detrimento dos segundos. Estes, cansativos, metódicos e, embora necessários, furtavam-me a leveza e o prazer daqueles e de outros que pudessem surgir. Eram códigos, legislações, doutrinas..leis secas, sem viço!As leis são normas, mas não regem mais minha estante. "Desempoeirar" os livros devolvendo-lhes sentidos, éis minha nova regra!

"(...)Os objetos só têm sentido quanto têm sentido fora disso...Eles precisam ser olhados, manuseados. Como nós. Se ninguém me ama viro uma coisa ainda mais triste do que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio, vazio. É o peso de papel sem papel, o cinzeiro sem cinza, o anjo sem anjo, fico aquela adaga fora do peito. Para que serve uma adaga fora do peito?- perguntou e tomou a adaga entre as mãos (...)" Os objetos.TELLES, Lygia F.

27.3.11

Rabiscos I


Era madrugada.O sol preguiçoso não dava sinais de vida e a escuridão arrastava-se infinitamente tirando-me o sossego. A única luz que parecia existir era de algumas estrelas, assim como eu, solitárias. Era um dia qualquer, de um ano qualquer. Eu, a insônia e as estrelas. Estávamos ali na janela do mundo, a data era indiferente quando recomecei a escrever.

24.3.11

Novo Conceito: Tecnodemagogia

Quatro paredes abandonadas pelo descaso. Luz fracionada, natural, que invade o espaço esmagada entre as telhas. Ventilação? Quando em surto alguém corre. No recreio? Não, não há espaço para recreio, esse intervalo é furtado dos alunos, mas para pegar a borracha emprestada ou aquela folha extirpada de algo parecido com um caderno sofrida pelos rabiscos inelegíveis, quando é atirada ao cesto de lixo...sim, há ventilação.Livros? Dizem que há uma Política Nacional do Livro, mas não se sabe ao certo. Ali os livros nunca chegaram. Não, minto, sim, já chegaram: foram colhidos em depósitos. Eram antigos, mofados, incompletos, três por aluno, dois por aluno, nenhum, tanto faz, eles nunca sentiram o cheiro de um livro novo, como cheiro do café passado no coador de pano, instigador de sentidos que faz o imaginário brotar uma mesa com pães frescos, bolo de milho, cuscuz e beiju...mas não, nada de ilusão, é realidade mesmo!Biblioteca? Pra quê? Quatro paredes sem alunos, sem fardas, sem cores, sem voto? E computadores? Jamais! Despertam mentes curiosas e investigativas, é melhor não ousar. Detalhe, o enfarte desse conglomerado de paredes de cimento e tijolo seria inevitável, a fiação jamais suportaria essa tecnologia.O fato é que acaba de ser aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), do Senado Federal, o projeto de lei que altera a Política Nacional do Livro, e que será votado em meados do ano. Então enfim serão garantidos livros aos alunos? Não, isso já é, ou deveria ser. O que muda? Em era de evolução tecnológica, onde jumentos são utilizados como bibliotecas para transportar livros, caixas de papelão são improvisadas para o mesmo fim, livros nem chegam as escolas e computadores não relíquias sem conexão com internet (na maioria, grande maioria das escolas, até inexistem)... agora os E-readers, mais conhecidos como Ipad,equipamentos sofisticados, leitores de livros digitais, serão equiparados a LIVRO !!!!

Multiplicam-se quatro paredes, multiplicam-se alunos, multiplicam-se votos, multiplicam-se espaços coletores, armazenadores chamados de escola. Inova-se no conceito: tecnodemagogia! 

São Luís 22.03.11

Alice Nascimento

Foto: Elizeu Cardoso

Esmalte Rosa Alaranjado

A tarde cinza estava laranja. Laranja cor da água que se mistura ao barro depois de uma forte chuva, fazendo do chão a paleta de um pintor que artesanalmente misturava pigmento ao solvente na preparação meticulosa de suas tintas. Em tela, as paredes que protegiam aquela correnteza e as vestes de quem por ali passava, transfiguraram-se ... alaranjadas. Laranja sol, Laranja calcedônia, Laranja tangerina... cores emprestadas que jamais um pintor alcançaria produzir com tamanha perfeição, mas que se espalhavam por todos os lados: cor da felicidade, da alma humana sob proteção, do cheiro de fruta. Cor que se contrastava com o meu esmalte rosa, embora sob o reflexo alaranjado.

Simplicidade e felicidade das pessoas em um Salão Laranja 23.03.11

Foto: Rodrigo Marques -Centro de Arte Contemporânea de Inhotim


Espelho do Mar

Farol. Nunca havia navegado a noite. Confesso, tenho medo do mar, mas ontem impossível foi resistir a profundeza do oceano que se redimensionava sob o meu olhar. Sereno. Leve eram as ondas que se estendiam sobre as águas tão límpidas que as estrelas do mar foram descobertas. Encanto. Medo se fez euforia, como criança que invade as ondas da praia até não alcançar o chão, entrei no mar, pulei as ondas...uma por uma...sob a luz branca incandescente. De qualquer ponto, de qualquer lugar, o Farol alcançava. Prossegui...onda, por onda, conto por conto em uma noite mágica, em um barco de papel.

Re-lendo Lygia Fagundes Telles, sob a Lua de 19.03.11

"-Já é tempo de uvas? - perguntei colhendo um bago. Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto. " (Trecho - Verde Lagarto Amarelo, Lygia F.Telles)

Foto da lua, dia 19.03.11 - Cacinho Anima
(da varanda de sua casa)


Des-engarrafando

Lamúrias, por quê? Adorei o engarrafamento da noite de hoje: consegui ouvir e cantar um CD inteirinho, e acreditem, acompanhando as letras das canções, e entre a primeira e segunda marcha, no resgate do meu novo companheiro, um bloquinho de anotações, registrei pensamentos...refleti sobre eles...minhas letras andavam engarrafadas, e hoje começaram a fluir...lentamente como o trânsito a minha frente. 

Engarrafamento - Av. dos Africanos - 17.03.11

Cego é o que vê

Hoje o pisca alerta do carro foi acionado. Um cego atravessava uma avenida, sozinho. Ninguém o viu, embora sua bengala chegasse a bater nas pernas dos que ao seu lado passavam. Não havia faixa de pedestre, nem guarda, nem ninguém. A freada brusca de um carro fez com que o cego visse o que ninguém viu: a ignorância e o individualismo que tornam todos menos humanos! Parou atordoado sem saber o que fazer...no meio de uma avenida! Agora sim, o pisca alerta pulsava como a batida do coração...o susto talvez tivesse despertado a todos do ciclo vicioso em que vivem. Celulares foram desligados, passos foram refeitos, suor enxugado de testas aflitas, suspiros arrancados de um silêncio ensurdecedor. Agora o cego conseguiria chegar ao outro lado da rua, e quem sabe ampliaria a visão daquela platéia, a priori, indiferentemente cega!

Cotidiano - 16.05.11

O dia em Fuga

Hoje, o dia fugiu do mundo! Escondeu-se em um canto qualquer, envergonhado com tanto descaso! Penso que por isso o ano está cada vez mais veloz: para que não tenhamos tempo de analisar o que está acontecendo a nossa volta!


Um dia qualquer de reflexão




Foto: Rodrigo Marques Relógio de Sol no ano de 1785 em Tiradentes-MG.