30.5.11

Curto Conto I

Foi então que a reencontrou. A madrugada a acordara mais uma vez, às quatro horas. Ouvindo-a chamar, não ligou. Voltou-se ao aconchego da cama. Escondida sob o lençol refugiou-se da luz que se aproximava. Sentiu-se inquieta. Afundou-se no travesseiro na tentativa de impedir qualquer possibilidade de pensamento. Não queria acordar os sonhos, mas as palavras a beliscavam como se estivesse invadido um formigueiro. Seria ela a invasora? Mudara a posição do travesseiro. Letras começaram a surgir como formigas sendo avisadas do esmagamento em massa de suas companheiras... Letras, frases, textos... um furor de palavras azucrinando sua cabeça! Não suportou mais! Colocou os pés no chão, abriu a janela e acordou o sol.

A inspiração

Alice Nascimento

Foto: quase fim de um dia sob o olhar de Alice

29.5.11

Tuas mãos, olhos.


Lançava ao ar um esqueleto de peixe preso a linha de pesca a navegar oceano mergulhando em ondas de vento sob melodia das palavras... eis suas mãos perdidas no espaço a tatear o ar como pipas eufóricas na imensidão do céu, cegas pelo brilho do sol, num vai e vem ritmado, até ficarem presas no telhado das casas, cansadas, quando se aportavam sobre aquele joelho frágil.

 Mãos que se reinventaram.

Alice Nascimento

Foto: Zeca Baleiro entrevista A.Almeida, fotógrafa nome indefinido




21.5.11

Antônio Almeida, o inço das artes no Maranhão

Como planta daninha que se agarra despretensiosamente ao solo modificando a paisagem natural saiu do Jacaré, em Barra do Corda, desbravando caminhos até alcançar São Luís, onde denunciou sua vida e a de milhares de famílias do interior do Maranhão sem deixar escapar o amarelo que queimava o verde e secava o azul, o colorido da cultura e a palidez do sofrimento que lavrava a terra árida de fome e seca por onde passava.

Do chão infecundo, fez brotar arte. Nunca aceitou sair de sua terra para viver uma cultura solitária avessa a sua natureza de homem simples. Suas mãos colhiam da natureza inspiração como raízes que buscam no âmago da terra os nutrientes necessários à sobrevivência. Indiferente ao dinheiro, o enriquecimento que desejava era intelectual e artístico, trabalhava pelo valor que a arte tinha pra si mesmo: a busca pela perfeição, no entanto, com ela pagava o leite e a boemia: nutria seus dez filhos, e quando dava, rematava a conta do bar.

Sobrevivente da seca castigado pelo sol, a escuridão tomou conta de seus dias. As madrugadas, companheiras de insônia, ouviam-no em silêncio, enquanto travava discussões com seus próprios pensamentos. No dia seguinte... prosas e poesias com o cheiro de terra através do olhar de um menino autodidata de nascença que crescera sob instrução de seus instintos, mas, sobretudo, de um artista nervoso que desafiou até a cegueira tateando pensamentos e redesenhando palavras, sementes essas lançadas no chão fértil de suas limitações criativas, esse era o Almeida: uma raiz amarga difícil de ser tragada, mas que se ramificava.

Aos 27 de maio deste ano completaria 89 anos, se não tivesse sido desentranhado da terra em Janeiro de 2009, a facão! Sua sede de viver era tamanha que teimou com a vida agarrando-se a cada sopro dos ventos até o silêncio pintar o leito de paz. Hoje, suas estirpes ainda permanecem entranhadas na terra que amou, ilustrou, pintou, xilografou... verdadeiras barrigudeiras espalhadas pela cidade, murais que deveriam ser tombados pelo valor histórico e cultural, testemunhas sol a sol do caminhar de um homem franzino e inquieto que germinou arte no Maranhão.

Alice Almeida Nascimento dos Reis


Há muitos anos atrás, eu e meu avô, em sua casa no Monte Castelo, guardiã de seus dias de vida

Quase Epitáfio
No meio do caminho que caminho
a cova
Em que me planto regermino sonho
Que é vida sempre sol a sol a caminhar
Antônio Almeida
( 1922-2009)



15.5.11

Rabiscos III

Alice por Alice





Assusto-me com as incertezas, nelas encontro a verdade.

Alice Nascimento

10.5.11

Rabiscos II





É leve o meu pensar. 
Não triste, mas leve..tão leve que se dissipou.


Alice Nascimento

2.5.11

Vida em uma Lauda - Recorte

Estaria no lugar certo? Duvidou por alguns instantes. A confirmação dera-se pela presença dele, ou deles, já não tinha certeza se era um, ou alguns, mas duvidou que fossem todos. Havia se preparado para aquele momento, já sabia que encontraria hostilidade e simpatia. Serviu-se da simpatia dos garçons: uísque com algumas pedras de gelo, e aguçou hostilidades dos demais depois da segunda dose. Sim, ela preferia uísque, forte, ácido, antídoto perfeito para suportar aquela noite venenosa.

As palavras fluíam através de sua voz segura e agradável enquanto o choro do malte parecia incomodar o passeio que os demais realizavam pela carta de vinho. Na curva, ela e seu copo. Silenciou-se.

A noite prosseguia aborrecida com as conversas que calavam a música entre pessoas e garrafas vazias. Os brindes eram inexistentes, até o santo fora esquecido. Este não saberia apreciar o vinho, escolher a safra, seguir os rituais catedráticos das vinícolas, como cheirar a rolha, segurar a taça com maestria, sacudindo-a antes de sentir o aroma e enfim degustar. Jamais derramariam o do santo no chão. Lugar luxuoso, ambiente inóspito e pessoas indiferentes. De fato o santo estaria nos botequins com os passarinhos e suas águas entre poesias, cheiros e sabores.

Na terceira dose, o gelo beijava-a com doçura tocando-lhe os lábios. O copo demorava cada vez mais a retornar a mesa, enquanto as sinuosas taças de vinho, abandonadas, soberbamente, o observava. Estariam elas enciumadas por não serem tocadas, por não sentirem o calor daquela boca, a maciez de suas mãos, e, sobretudo a admiração dos seus olhos? Permaneceu em silêncio. O malte percorria suas veias provocando-lhe um leve torpor pelas frágeis palavras que circundavam aquela mesa quadra. Entre uma dose e outra, água... talvez o que de mais puro houvesse entre a mesa e as cadeiras, o gelo não, esse se misturava ao malte e continuava a furta-lhe beijos cada vez mais ousados chegando a tocar a ponta de sua língua macia...assim como seus lábios. A língua já não se continha, desfilava sensual sobre os lábios sugando o malte que escapara do copo deixando rastros em sua boca... Já estava na quarta dose.

Garrafas vazias sobre a mesa, muitas pessoas vazias sobre as cadeiras cenário perfeito para a  futilidade proporcional ao preço do vinho consumido e apreciado com refinamento. As taças suntuosas inquietaram-se. Frases suicidas começaram a ser vomitadas sobre a mesa. Ela, impávida, ouvia, embora tentasse se distrair com o gelo que nadava no uísque.

A primeira frase cortou-lhe os pulsos, não acreditava estar ali. Recolhera as mãos. O gelo sozinho continuava o movimento. A segunda a asfixiara. Passou a mão direita pelo pescoço como se procurasse a corrente inexistente para se enforcar, como não percebera isso antes? A terceira, uma adaga no coração! A mão escorregara pelo decote chegando a tocar o próprio seio na tentativa de estancar o sangue que se espalhara em todo o ambiente, o que lhe segurava? O despedaçar da taça de uma mesa vizinha, a trouxe de volta. Os cacos estavam espalhados por todos os lados.

As taças vazias sorriam e espelhavam seu rosto incrédulo. O lápis preto que contornava perfeitamente seus olhos poderia saltar em linha enquanto sua língua sarcástica costurava a boca de algumas pessoas num esforço sobre humano de lhes fazer um favor, era como se prendesse o botão que fugira de sua casa para nunca mais sair.

Bebida e inteligência; aperitivo e prato principal; um estimulante, o outro afrodisíaco, juntos, potencialmente destrutivos, sobretudo na presença de desconhecidos. Ela sutilmente sedutora e fatalmente educada. Levantou-se bruscamente sob o olhar controlador das taças, beijou o gelo longamente, pegou a bolsa que dormia sobre a mesa e pediu licença.As cadeiras arrilhiaram-se. Era possível ouvir o burburinho das taças. Caminhou lentamente e sem dizer nada a ninguém, abriu a porta da gaiola de ouro e foi em busca dos passarinhos, de suas águas e de todos os santos.

O silêncio trincou as taças. Nada a segurou, nem o copo de uísque. O gelo derretera.

Alice Nascimento

Foto: Alice por Alice