As lágrimas passeavam pelo rosto e temperavam a saliva. Algumas retidas por um pano que acudia aquela mulher nas horas de aflição. O fungar poderia ser ouvido apenas pelo frio aço que sua mão esquentava, era o que de mais próximo se mantivesse daquela criatura. Em que pensara? A lenha, consumida pelo fogo, a apressava, assim como criança que pergunta e exige resposta urgente. As lágrimas paralisaram. Nenhum corte, embora o tomate chorasse sangue sobre a tábua, ao lado das cebolas e alho.
Destampou a panela, atirou-lhe os vegetais cortados, como os seis filhos lançados em um mundo capaz de devorá-los em segundos. Filho de pobre tinha que se formar, pensava. A panela segredava com a fina camada de pretume que escondia o brilho do alumínio como a história daquela família. Espelhara-se sobre a panela aberta, quantos anos de reencontro. O calor agonizava o pano que deslizava sob sua testa febril. Seus largos ombros largados não acalentavam mais os filhos, embora sustentassem a leveza da idade e o peso das preocupações. Nenhum professor, pensou . Doutor, então... remendou o pensamento com uma fala solta ao ar, igual a faca lançada sobre o alvo, de um atirador de facas que vira uma vez num circo que passou pela cidade. Suas saídas restringiam-se às noite de lua cheia à porta de casa.
Se voltou à panela. A colher beijava-lhe a mão, deixando-lhe marcas. Faltava algo... Em que errara? Colocou mais lenha no fogo! Abandonara seus sonhos e vaidade para garantir a educação de todos os filhos. Comida na mesa; ladainha de aconselhamentos antes de dormir; bênção na chegada e saída; noites de solidão enquanto o marido se lançava ao mar! E agora os filhos crescidos e ela no mesmo lugar de sempre presa ao rosário que lhe ensinaram desde criança. Enxugou as mãos na bainha do vestido. O sabor já não lhe parecia mais o mesmo. Tempero... isso! Poupou no tempero... Desviou o pensamento. Talvez faltasse tempero à vida, não o sal das lágrimas nem o doce da ilusão... mas algo que não conseguia descobrir...
Mexeu e remexeu a panela. O caldo engrossara. Havia outro cheiro no ar. Beijou a colher. Puxou o pano em movimento brusco e limpou o canto da boca. Olhou perdidamente para o horizonte que se limitava ao jirau onde muitas outras panelas descansavam. Se voltou ao sabor. Pensou nos três filhos artesões de rede, dois no mar pescando e uma que ainda morava ali naquela casa. Nenhum professor ou doutor como sonhara... nenhum! Não se conformava... em que errara?
O quintal se fez sala. À sombra da mangueira, marido, filhos, genros, noras, netos e bisnetos. Mochos cercavam um tablado sustentado por dois fortes cavaletes, como os patriarcas daquela família. Um fino lençol de linho que a acompanhara por mais de 40 anos desfilou sobre a mesa como espuma do mar que banha a areia da praia... Perdeu-se em pensamentos... os sonhos são como as ondas do mar... vêm e vão...o que fica é a beleza da praia.
Mesa posta, lembranças servidas. As refeições repousaram aflitas sobre as terrinas. O aroma agitou os talheres e silenciou o ambiente consumido de prazer. O pano fora esquecido, o calor humano o dispensara. Os pratos sujos jamais seriam lavados. O sabor adormeceria na boca de cada um. Ela descansou a colher sobre o prato consumida pelos sorrisos que ali brotavam... Tempero, lembrou... nunca faltou tempero...
Alice Nascimento
Foto: Elizeu Cardoso |
Onde não falta o tempero...Transborda o amor!
ResponderExcluirLika... Desejo que não somente nesse dia 12, mais em todos os outros de sua vida esse tempero maravilhoso faça parte!
Um beijo carinhoso