28.4.11

"Mimosa Pudica"

Não a toque, isso a fecharia mais uma vez. Seu encanto transmuta-se pudicamente, é a fragilidade que lhe é própria. A inquieta curiosidade humana, mesmo sabendo de sua natureza sensitiva, investe no toque, porque não resiste a seus encantos, o proibido seduzindo a sensatez. E, embora se mantivesse presa ao chão por raízes entranhadas a terra, era a flor, que acordada por fortes ventos escapava ousadamente de seus galhos... e novamente ela nascia, e era tocada. Cansada de existir, fechou-se ao mundo, folha por folha... a dormir...

Alice Nascimento



Mimosa Pudica, também conhecida como Dormideira e "não me toque"

26.4.11

Vida em uma lauda: A vitrola

Entre, disse a ela suavemente na penumbra de uma tarde preguiçosa, ou de uma manhã sonolenta. Queria dizer-te mais do que posso, falou-lhe ao ouvido enquanto ele fechava a porta e um novo mundo abria-se... sem espelhos, já se conheciam tão bem, um ao outro e a si mesmos. Limitou-se a frases conhecidas e sofreu por isso. Mudou de assunto: Lembra dos dias azuis e serenos que tivemos? Continuou a lhe sussurrar, enquanto ele delicadamente a beijava e desabotoava suas luvas, tão macias quanto suas mãos. Poderia afundar-se nelas.

As trilhas sonoras esgotaram-se, estão cansadas de nossos ouvidos. Será por isso que está tudo tão silencioso? Questionou-o sentindo a mudança naquele ambiente, embora houvesse sons no silêncio...

Ainda guardas os LP’s? Insistiu enquanto era conduzida em direção à janela. Apoiou as duas mãos sobre o mármore frio e úmido sentindo a brisa que invadia o quarto. Ele, delicadamente desatou o nó de seus cabelos vermelhos que ela insistia em esconder. O fogo alcançava os seios dela e as labaredas espalhavam-se queimando docemente a pele branca do corpo dele. Ele a ouvia enquanto tentava controlar o fogo que lhe consumia. Queria vê-los tocando mais uma vez... talvez não eles, mas ver o teu ritual de fazê-los tocar... assim como me apresentastes a vida... Contar-me sobre os podres de alguns cantores, alertando-me para a natureza humana até então para mim mascarada, mostrar-me os bastidores e seus segredos. Ela continuou sentindo a pressão do corpo contra a janela... Vê-lo passar os dedos por sobre as pontas dos LPs já gastos pelo tempo, um a um: a infinita contagem dos amores colecionados...quantas histórias até encontrar o que queria, fazendo-me refletir sobre escolhas e caminhos, e no final, sempre havia os três preferidos, mas era o terceiro que tocava, assim como a mulher que marcara sua vida... Tirá-lo da capa, virá-lo de um lado a outro sem nenhum pudor, sorrir com tamanha satisfação... e com o olhar, tirar-me para dançar...

Fale-me, ela insistiu, sentindo o calor que já escapava pela janela, o que houve com os dias azuis? Transformaram-se, disse ele, e continuou...não vês, frágil era a agulha que deslizava sobre o vinil, era o único mundo que ela conhecia, não resistiu ao tempo e se rompeu, cansou das mesmas coisas, gira e volta, eram sempre os mesmos discos, quando irritada, arranhava-os. E não a substituístes? Aflita, ela indagou... Não, respondeu ele, não a fabricam mais. Era uma agulha rara... e tão sensível, talvez única, mas imutável. Na verdade, acredito que com o passar do tempo ela quisesse evoluir, mas não resistiu...diferente de ti. Tu evoluístes amor, e não perdestes tua sensibilidade, continuas apaixonante. O que dura, é o que é capaz de se transformar, de interagir com a vida, entendes? Por isso não precisamos dos LPs, temos todas as melodias... ouvimos quando nos queremos, finalizou.

Mas, e a vitrola? Ela quis saber... A vitrola já não existe, ele respondeu. Não faria sentido sem a agulha. Ele esticara os braços dela sobre a janela prendendo-os com uma das mãos, enquanto a outra se misturava as chamas. Aquecendo-lhe o pescoço, segredou a pérola  presa a orelha dela, cúmplice daquele momento: Amor hoje, cada dia possui sua própria cor, seu ritmo e sons, vivemo-os de formas diferentes. Esqueça a vitrola, e o azul dos dias, estes têm agora as cores que queremos dar para eles...Venha, dance comigo!

Os sons do silêncio incendiaram-se!


24.4.11

Passos, passará? Não passarão.

Eram caminhos os desvios. Trilhou-os todos. Pisou em falso, beijou o chão, colheu flores... Andou em terras áridas, íngrimes e em campos férteis. Conheceu a sede e a saciedade, o sol e a lua, o calor e o frio... De tudo restaram as pegadas que não se apagarão.

Era leve o pesar.


Foto:Pés de Alice, diferentemente do pensamento
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15.4.11

Vida em uma Lauda – O perfume

Olhou para trás e lá estavam eles...os dias. Vividos, esquecidos, lamentados, felizes ou não, mas existiram. A sua frente, outros tantos a serem colhidos, como as acerolas prontas para virarem suco... Não lembrava se existia doce de acerola, pareceria que só havia um fim para essa fruta. Ao seu lado, ela, tão próxima que era possível sentir seu pescoço e sugar-lhe o cheiro. Que perfume seria aquele? Uma essência desconhecida, quem sabe flor de maracujá, ou laranjeira? Não, ela não se deixaria descobrir assim tão fácil. Havia um mistério no ar, era possível sentir.

Acerolas...voltou a pensar enquanto seus sentidos buscavam aquela essência...acerolas...fáceis de brotar, fáceis de colher, sempre ao alcance das mãos, assim era seu cotidiano, tudo tão preciso, inócuo, e de repente...ela ao seu lado com um aroma indecifrável.

Já a conhecia há algum tempo, mas agora se sentia estranho, algo acontecera e ainda não entendia...seus sentidos estavam em pane, que perfume seria aquele? Olhava para o quintal e não conseguia imaginar de que fruta, folha ou erva saíra àquela essência que lhe perturbara.  Laranjeira? O cítrico do limão? Quem sabe lavanda, ou cidreira? Não, não era nenhum desses, ainda mais a cidreira, não se sentia calmo com aquele aroma intrigante. Caminhou até o pé de maracujá e colheu uma flor, aproximou-a deixando tocar suavemente os lábios...poderia ser a pele dela, a boca e reconduziu o pensamento....que cheiro era aquele? Já havia lido algo...as fragrâncias misturam-se a pele e adquirem novos aromas, que são próprios de cada pessoa...sim, lera isso em algum lugar, e qual seria seu cheiro sem o perfume? Preocupou-se... Não achou correto o pensamento, seria como pedir que se despisse, ou lhe tirasse as roupas a força. Fechou os olhos, encostou-se no tronco de uma mangueira. Passou o braço por detrás da árvore fazendo-a de travesseiro. Poderia sonhar...

Por alguns instantes, embalou-se com o vento que lhe trazia diferentes cheiros. Chegara a vê-la caminhando em sua direção com seu vestido que misturava o lilás ao branco, como a orquídea que encontrara uma vez no troco de uma árvore, não sabia se orquídea tinha algum aroma, era difícil alcança-lá, parecia ser intocável, mas o vestido... o vestido a fazia flutuar no ar... e mansamente repousar em seus braços como uma pena que se solta de uma ave e cai despretensiosamente sobre o chão. Era possível tocá-la, acariciar seu rosto, sentir seus lábios, o ombro, a nuca... afundar-se no olor de sua pele. Inquietou-se, com o calor do beijo. Sentia-se completamente seduzido pelo cheiro dela...

Há quanto tempo sentira aquele perfume, dia após dia, e nunca havia ousado invadí-lo? Descobrira que os dias guardam essências que exalam mistérios e encantamentos, decifrá-las não seria uma atitude insana, estava vivo, e mais que isso, era um homem livre, pensou. Não, não poderia continuar a colher acerolas e abandonar as orquídeas deixando os dias passarem desapercebidos da vida. Podia mais, queria mais!

Abriu os olhos. Voltou a sentir o perfume...

Alice Nascimento

Foto: Orquídea de Alice

13.4.11

Vida em uma Lauda - O vinho

Encontraram-se casualmente em um bar, mas o destino tratou de apresentá-los em outra ocasião. Ambos resignados com a vida e fragilizados emocionalmente, cúmplices de amores falidos: ele vulnerável acorrentado em um amor dissolvido, ela desiludida, com a chave e o cadeado em mãos, presa a um amor desacreditado. Ambos “adulteceram” precocemente: tiveram a adolescência usurpada por responsabilidades. Cada um em sua bolha de sabão, imaculadamente, inabalável. Ledo engano. Ventos mudam a direção, bolhas rompem-se. Fora delas, ou se abandona o estado de latência ou se reinicia o ciclo vegetativo de viver. A frente de tudo isso, a decisão de cada um...como provar ou não aquele vinho.

A madrugada engolia a noite e já respirava o ar do amanhecer refrescando o sofrimento que se derramava sobre a mesa, como o suor escorrido das taças com vinho tinto abandonadas pelo calor da conversa que se desenrolava ali. Nos olhos dele angústia, nos dela, acalento. A conversa prosseguiu em caminho de formigas, um monólogo extenso até se perderam em olhares. O silêncio descarrilhou as formigas. O tempo parou. A vida parou. A respiração falhou. Só o pulsar do coração a trouxe de volta. Ela desviou o olhar, era possível ver a lua de sua taça. Imaginou se São Jorge a estivesse vendo... quem sabe a levaria dali antes que se apaixonasse novamente? São Jorge contra o amor, ou a ilusão, só queria ser protegida contra sofrimentos. Já nem sabia o que representava o amor. Levantou a taça, sentiu o leve aroma das uvas... pobres e deliciosas uvas, colhidas, amassadas, fermentadas e servidas em vinho. Pensou ser assim o viver, aprendemos com a vida depois que nos permitimos processar, mas diferentemente do vinho, não somos melhores à medida que envelhecemos, o amadurecimento é compreender que se deve colher o que a vida tem para nos oferecer e apreciar as parreiras, as uvas e o vinho. Pela primeira vez, sentia que abrira o cadeado de sua própria prisão.

O silêncio se estendera inquieto. Ele dobrava e redobrava a ponta do guardanapo abaixo da taça, totalmente encharcado, poderiam ser suas lágrimas, imaginou. Por que o amor acabara? Por quê? Examinou o resto do vinho que se refugiava no fundo da taça, era como os relacionamentos, não se evaporam totalmente, sempre ficava algo... Tudo lhe parecia mais lúcido:O fim é também recomeço, pensou levantando a taça ainda vazia. Pegou a garrafa naufragada no balde de gelo. Observou-a com delicadeza... perdeu-se no rubi de sua cor... que uva seria aquela? O sabor, o aroma, agora tudo lhe seduzia. Serviram-se de mais vinho.  

As taças beijaram-se ao amanhecer.

Alice Nascimento

Foto: Alice - Esmalte e vinho tintos

Rabiscos II

Olhares de Alice, Embu das Artes-SP





"Somos um pouco mais do que nos veem e muito mais do que nos conhecem, infinitamente mais."

Alice Nascimento


11.4.11

A Metade

Foi então que a vi, a Metade. Perdera seu viço, logo ele que hipnotizava as pessoas. Mas o que são as pessoas e a vida? Uma vitrine da outra. Antes, assim ela estava...na vitrine a espera de ser sucumbida por quem a desejasse, indefesa, insegura, embora madura, e então fora apanhada, como várias adolescentes enfogueiradas pelo assédio masculino e pela curiosidade inconseqüente em acreditar que controlam seus instintos e que as frases são eternas e verdadeiras. Acordem princesas, “era uma vez” já se foi, o futuro certo com final feliz, inexiste, porque felicidade são momentos e não a eternidade na dependência de uma pessoa que lhes ame, e, por não estarem preparadas para a vida, tornam-se metade. Uma metade em busca de outra metade. Mas foi àquela metade só, desacompanhada que me chamou atenção. No chão, abandonada, ácida, sem viço...

...a banda de uma laranja.

Alice Nascimento


9.4.11

Vida em uma Lauda - A porteira

Pensou na vida, mas não olhou pra trás. As lembranças já não faziam parte dos seus planos, não havia o que recordar, nem infância tivera. Na mala praticamente vazia, o futuro: um espaço a ser preenchido. Vestida de coragem, calçada de garra, deu o primeiro passo: encarar o mundo. No bolso, identidade para lembrar quem era; sobrenome para jamais esquecer suas origens, mesmo com todo o sofrimento, afinal cada um carrega consigo uma história difícil de ser apagada, e, além de algum dinheiro entregue por seus irmãos da venda de carvão, não levou mais nada, nem fotos; a da identidade era mera formalidade, já não se reconhecia ali.

O sol estarrecido acompanhava-a de perto sem deixar que nenhuma nuvem lhe tampasse a visão. Colocou a mala no chão e abriu a porteira retirando a corrente que se agarrava a cerca impedindo sua passagem. Parou. Contemplou por alguns instantes aquele céu tão azul que seria capaz de respingar sua cor em qualquer coisa. O calor intenso ultrapassava sua pele e alcançava o sangue que corria por suas veias. Era chegada a hora de partir o cordão umbilical com os dentes antes que a parteira do vilarejo cortasse os seus sonhos de ir embora daquele chão, pois antes dos dezoito anos, as barrigas das meninas já despontavam, enquanto os pais dos rebentos embrenhavam-se na roça, isso quando não eram vendidas aos fazendeiros por punhado de terra ou de dinheiro, como ocorrera com duas de suas irmãs. Quanto valeria? Desviou o pensamento e seguiu em frente. Nenhuma lágrima. Ninguém a levara até a saída do vilarejo. Iria ser mulher da vida, sua mãe dizia. O pai reforçava a ladainha chegando a ameaçá-la com o cipó, como o fizera em toda sua infância. Não se intimidou. Apressou o passo e chegou ao pequizeiro, local onde o pau de arara passava para recolher os desistentes, como o povo chamava quem ia embora. Para ela, os libertados.

Ao longe a nuvem de poeira avisava: é chegada a hora de partir! Respirou fundo. Engoliu a saliva forçosamente como se um nó na garganta impedisse o acesso... Pisou firme no primeiro degrau. Jamais teria o destino que lhe traçaram. Fechada a porteira, renascera.

Alice Nascimento

Foto: Rodrigo Marques

6.4.11

Guie-me à vida

Procuro desesperadamente um guia. Não sei se pessoa ou mapa, algo que me apresente à vida. Que junto a mim faça projetos e que sejam executados e registrados na certeza que passei pela vida!Quero ver o calor do reagge e das pessoas que ali se misturam, as umbigadas entre tambores, o bater das matracas e o esquentar dos pandeirões, ver o dia amanhecer ouvindo poesias, acender uma fogueira na praia ao som de um violão – quem sabe até aprenda a tocar violão, pode ser uma só música, ou várias -, sentar debaixo de uma mangueira e ouvir causos ou comer juçara batendo papo furado. Quero botar o pé no chão, andar descalça nas calçadas das casas do interior, ou quem sabe tentar malabaristicamente andar no meio fio das calçadas, como fazia quando criança, mas sem ousar furtar manga da casa do vizinho pra comer com sal e pimenta do reino, pois as asas dissolveram-se com o tempo, nem pegar sorrateiramente aquelas laranjas enormes que abríamos com as mãos para comer aos gomos das barrigudeiras, essas, já não existem mais, ou até mesmo, descer escorregando morro abaixo engolindo terra e rasgando as roupas e a pele nas pedras - Não havia dor mais deliciosa do que aquela! Quero sentir o cheiro da chuva e da terra molhada, catar canapun na beira das estradas, visitar feirinhas com gente de verdade, comer milho cozido enrolado na palha, bolo de tapioca frito com café preto entre uma conversa e outra, sentir o calor humano das pessoas entre cores, cheiros. Quero levar comigo  uma rede para nas viagens embalar meus sonhos conhecendo também novos escritores e canções. Quero conhecer os interiores e seus moradores... conversar, infinitamente conversar, ver a vida sob os meus olhos e o olhar deles e então... respirar a vida, experimentá-la, brincar e chorar com ela...observar o humano e o desumano...questioná-los até alcançar o mundo: cidades que ainda não fui, países que ainda não conheci... cultura... arte... Sim, eu preciso de um guia! 

Talvez, sejam os meus próprios pés!


Alice Nascimento


Foto: Meus pés, por mim Mesma

Não me fales de amor

Por favor, não me fales tu de amor, não agora, nem por esses dias. Não sobre esse idealizado pela literatura e cinema, decodificado em trilhas sonoras ou engarrafado em frascos de remédios como cura para solidão culturalmente inventada. Sobre esse amor eu não quero ouvir. O amor é uma dimensão maior, difícil de ser narrado, especificado e já o vivestes em tantos momentos... esquecestes? O amor é livre... livre foram teus passos pelo mundo... livres foram as tuas formas de amar. Não podes querer viver um amor de frascos, de álbuns limitados em páginas amarelas de sorrisos emoldurados, lindos e vazios. A tua natureza de amar é muito maior! O amor não é unidade, é extensão. Vê aquele pássaro flutuando no céu lilás em perfeito ballet moderno? Tanta flexibilidade, encantamento...consegues perceber? Pois tu não és o pássaro, tu és o céu. 

O céu é o teu limite!

Pra ti

"Tudo era harmonioso, sólido, verdadeiro. No princípio. As mulheres, principalmente as mortas do álbum, eram maravilhosas. Os homens, mais maravilhosos ainda, ah, difícil encontrar família mais perfeita. (...) Muitos retratos já não tinham mais nenhum mistério, mas sobre outros respingava suas reticências: -Um dia Ana Luisa, quando você for maior.." - O Espartilho, Lygia Fagundes Telles




5.4.11

Tempos de recolher

Lápis de Alice

Alguns se libertam abrindo a porta,
Outros abrindo a mente
Há os que abrem a mente e a porta
Outros abrem a porta e fecham a mente

Abro os livros,
Encosto as janelas,
Apago as luzes,
Escrevo...








                        

Guignol

A reencontrava todos os dias. Anos itinerantes de existência mórbida em miséria e falsas promessas. Peregrina de corpos, mutante em sentimentos febris. Pele marcada do tempo e de frases duras de uma vida refugiada na sobrevivência da qual fora obrigada a viver, expelida órfã em um mundo que não pediu. Filhos? Frutos de ocasiões, cada um de um homem, qualquer um, tanto faz, no fim todos vão embora. Proteção? Só de Deus se é que algum dia olhou para aquela criatura. Trabalho? Árduo, qualquer coisa, ou nenhuma coisa. A vida a mastigava enquanto ela engolia a fome e se nutria de esperança... Prazer? só o da carne mitigado em mentiras, única verdade que conhecia... Dias melhores? Nem a chuva trazia mais, inundava o que lhe restava. Dignidade? Nunca conheceu, nem sabia o que era, assim como Direitos, só Cidadania quando aprendeu a escrever seu nome e se viu obrigada a votar manipulada por frases que lhe soavam bem aos ouvidos.  E ela continuava ali... um mamulengo humano nesse teatro de horror, por todos os lugares, todos os bairros, todas as ruas, todas as cidades em todo o mundo...subvivendo.

Alice Nascimento

Foto: Gilson Camargo

4.4.11

Protesto ao sono!

Hoje, só hoje, não quero dormir. Quero exaurir a madrugada com meus monólogos internos. Da minha cama palco, dos fantasmas platéia, do pensamento meu discurso. Recuso-me a encerrar as pálpebras, como se findasse o espetáculo. Que se mantenham abertas as cortinas, para na penumbra declamar ... Ode ao Silêncio, quero me libertar!

Alice Nascimento

Foto cedida por Lívia Parente em uma de suas apresentações
Simplesmente, Deslumbrante!

2.4.11

Dia em fim

A estrada abria-se ao horizonte e a velocidade empregada satisfazia a necessidade de poupar a tecnologia e abrir as janelas do carro para voar com o vento. Passava do meio dia.Uma chaleira apitava freneticamente denunciando a pressão da água escaldante. Os pneus desesperados gritavam tentando agarrar-se ao chão, úmido e arenoso, ralhando com a lama desabrigada pelo intenso temporal, que ali havia repousado... tarde demais! Vida e morte; sorriso e lágrima, música e silêncio... freio e pista molhada..antagonia. Os instantes são meras distrações do tempo indiferente a existência humana: tão imprecisos, tão fatais, tão serenos que estar vivo é uma condição que deve transcender a simples existência, é absorver os milésimos de segundos como se eternidade fossem.

Uma vida...quem foi, o que fez e o que deixou de fazer...enfim...


Isabel

Adulta, fui apresentada a Isabel nas madrugadas de insônia. Jamais conceberia que me conquistaria a ponto de fazer parte dos meus dias, da minha vida para sempre, talvez porque seu contato me conduzisse a um mundo paralelo alucinógeno em imaginação e encantamento. Com Isabel, imagens da infância povoavam minha memória: sorrisos, descobertas, incertezas. Tudo tão doce e tão ácido.

Lembro-me criança, no bairro do São Francisco em que as diversões sempre rendiam sabores, e entre elas a mais suculenta de todas: as azeitonas roxas. Naquela época havia árvores frutíferas no quintal. Pequenas ou grandes, casas sempre acomodavam frutos, sombras e divertimento. Alegravam o ambiente pintando o céu e o chão de verde... eram verdadeiras gangorras que sustentavam em seus galhos crianças aventureiras! Mas, quem hoje consegue, no seu quintal, ver crescer uma árvore e sorve-lhe os frutos?

Não há mais folhas a se desprender das copas ávidas por nutrir a terra para uma nova germinação, o cimentado abortou qualquer esperança: é o método contraceptivo mais desumano de impedir que sementes fecundem a terra. O presente furtando o passado... Não acho mais as azeitonas roxas.

Ao final da tarde, cansadas, repousavam em uma bacia e eram despertadas por mãos ávidas de desejo. Doces, azedas, verdes, maduras, passadas...a aventura de colhê-las as igualavam...deliciosas azeitonas! Êxtase era o estado mais puro e humano que a coloração violeta deixava na língua. Talvez seja por isso que a palavra “roxo”, em certas expressões, denote intensidade. Sim, ficava ROXA de felicidade!

Isabel poderia ser uma azeitona roxa, se não fosse uma uva! “Uva Isabel”... de fato, alucinógena. Tão rara quanto a azeitona, mas tão presente como as recordações. Deliciar-se dessa uva roxa, doce e ácida, é reviver momentos eternizados.

Quintal da casa da Tia Nadir, em Pastos Bons-MA